terça-feira, agosto 30, 2005
Terminei de ler um livro fantástico.
Quando os neo-liberais querem expor todas as contradições do socialismo citam livros como a "Revolução dos bixos", querendo provar que nenhum sistemas baseado na cooperação pode dar certo. Agora surgiu um livro bem contemporâneo mostrando o outro lado da moeda. Um trecho e uma entrevista que reproduzo a seguir mostram um pouco do universo criado pelo autor mostrando no que pode se tornar uma sociedade onde o ideário capitalista seja levado ao extremo:
Trecho
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"PRIMEIRA PARTE
Nike
Hack ouviu falar em Jennifer Governo pela primeira vez junto ao bebedouro. Só estava ali porque o do seu andar não tinha água; o Jurídico iria cair sobre a Fontes da Natureza como uma tonelada de merda, pode apostar. Hack era funcionário da Distribuição de Merchandising. Isso significava que quando a Nike fazia um punhado de cartazes, bonés ou toalhas de praia Hack tinha de mandá-los ao lugar certo. Além disso, se alguém reclamasse da falta de cartazes, bonés ou toalhas de praia, Hack tinha de atender ao telefonema. Não era tão empolgante como antigamente.
- É uma calamidade - disse um homem perto do bebedouro. - Faltam quatro dias para o lançamento, e Jennifer Governo está pegando no meu pé.
- Meu Deus - disse seu companheiro. - Deve ser um saco.
- Significa que temos de andar rápido. - Ele olhou para Hack, que estava enchendo seu copo. - Ei, você.
Hack levantou os olhos. Os dois estavam sorrindo como se ele fosse um igual - mas, claro, Hack estava no andar errado. Eles não sabiam que ele era apenas um funcionário do Merch.
- Oi.
- Não vi você aqui antes - disse o cara da calamidade. - É novo?
- Não. Trabalho no Merch.
- Ah. - O nariz dele torceu.
- Nosso bebedouro está vazio. - Hack se virou rapidamente para ir embora.
- Ei, espere - disse o executivo. - Você já fez algum trabalho de marketing?
- Ahn... - disse ele, sem saber se era uma piada. - Não.
Os dois executivos se entreolharam. O cara da calamidade deu de ombros. Depois eles estenderam a mão.
- Eu sou John Nike, Agente de Marketing de Guerrilha, Produtos Novos.
- E eu sou John Nike, vice-presidente de Marketing, Produtos Novos - disse o outro executivo.
- Hack Nike - disse Hack, apertando a mão deles.
- Hack, eu tenho o poder de tomar decisões de contratação de empregados de nível médio - disse o vice-presidente John. - Está interessado num trabalho?
- Num... - Ele sentiu a garganta ficar apertada. - Trabalho de marketing?
- A continuidade será avaliada caso a caso, claro - disse o outro John.
Hack começou a chorar.
- Pronto - disse um John, entregando um lenço. - Está se sentindo melhor?
Hack confirmou com a cabeça, sentindo vergonha.
- Desculpe.
- Ei, não fique preocupado com isso - disse o vice-presidente John. - Mudança de carreira pode ser uma coisa muito bem-sucedida. Li isso em algum lugar.
- Aqui está a papelada. - O outro John lhe entregou uma caneta e um maço de papéis. Na primeira página estava escrito contrato para realização de serviço, e as outras eram em letras muito pequenas para serem lidas.
- Querem que eu assine isso agora? - indagou Hack, hesitante.
- Não precisa se preocupar. São só os acordos usuais relativos a não-realização e não-revelação.
- É, mas...
Hoje em dia as empresas estavam ficando muito mais duras nos contratos de trabalho; Hack tinha ouvido histórias. Na Adidas, se um cara largasse o trabalho e o substituto dele não fosse tão competente, eles o processavam por perdas de lucros.
- Hack, precisamos de alguém que possa tomar decisões rápidas. Alguém que tenha pique.
- Alguém que possa realizar coisas. Com um mínimo de embromação.
- Se não é o seu estilo... vamos esquecer esta conversa. Sem problema. Você continua no Merchandising.
O vice-presidente John estendeu a mão para pegar o contrato de volta.
- Posso assinar agora - disse Hack, segurando com mais força.
- Isso é totalmente com você - disse o outro John. Em seguida ocupou a cadeira ao lado de Hack, cruzou as pernas e pousou as mãos sobre elas, sorrindo. Os dois John tinham sorrisos bons, notou Hack. Ele imaginou que todo mundo no Marketing era assim. Os rostos também eram bem parecidos. - Só aqui embaixo.
Hack assinou.
- E ali também - disse o outro John. - E na próxima página... e uma aqui. E ali.
- É bom ter você a bordo, Hack. - O vice-presidente John pegou o contrato, abriu uma gaveta e o largou lá dentro. - Bom. O que sabe sobre os Nike Mercury?
Hack piscou.
- É o nosso último produto. Eu não vi um par, mas... ouvi dizer que é fantástico.
Os John sorriram.
- Começamos a vender os Mercury há seis meses. Sabe quantos pares já vendemos?
Hack balançou a cabeça. Cada par custava milhares de dólares, mas isso não impediria as pessoas de comprá-los. Eram os tênis mais maneiros do mundo.
- Um milhão?
- Duzentos.
- Duzentos milhões?
- Não. Duzentos pares.
- O nosso John aqui - disse o outro John - foi pioneiro no conceito de marketing por recusa de vender produtos. Isso deixa o mercado louco.
- E agora está na hora de tirar proveito. Na sexta-feira vamos jogar quatrocentos mil pares no mercado a dois mil e meio cada.
- O que... já que eles custam... quanto mesmo?
- Oitenta e cinco.
- Já que eles custam oitenta e cinco dólares para ser fabricados, nos dá um lucro bruto de aproximadamente um bilhão de dólares. - Ele olhou para o vice-presidente John. - É uma campanha brilhante.
- Na verdade não passa de bom senso - disse John. - Mas o negócio é o seguinte, Hack; se as pessoas perceberem que cada shopping center do país tem os Mercury, vamos perder todo o prestígio que nos deu tanto trabalho para montar. Estou certo?
- Está. - Hack esperava parecer confiante. Realmente não entendia de marketing.
- Então sabe o que vamos fazer?
Ele balançou a cabeça.
- Vamos atirar neles - disse o vice-presidente John. - Vamos matar todos os que comprarem um par.
Silêncio.
- O quê? - perguntou Hack.
O outro John disse:
- Bem, não todo mundo, obviamente. Achamos que só temos de apagar... o que foi que decidimos? Cinco?
- Dez - disse o vice-presidente John. - Para segurança.
- Certo. Apagamos dez clientes, fazemos com que pareça coisa de garotos do gueto e teremos a credibilidade das ruas entrando sem parar. Aposto que vamos acabar com o estoque em vinte e quatro horas.
- Me lembro que a gente sempre podia contar com aqueles garotos de rua para matar algumas pessoas para pegar os últimos Nike - disse o vice-presidente John. - Agora as pessoas são mortas por Reeboks, Adidas... até por tênis sem marca, pelo amor de Deus.
- Os guetos não têm mais nenhum sentido de moda - disse o outro John. - Eles são capazes de usar qualquer coisa.
- É uma desgraça. De qualquer modo, Hack, acho que você entendeu. Esta é uma campanha de arrasar quarteirão.
- Nem fale em campanha de ponta - disse o outro John. - Ela define o que é ponta.
- Hmm... - disse Hack. Em seguida engoliu em seco. - Isso não é meio... ilegal?
- Ele quer saber se é ilegal - disse o outro John, achando divertido. - Você é engraçado, Hack, é ilegal matar pessoas sem o consentimento delas, é muito ilegal.
O vice-presidente John disse:
- Mas a questão é a seguinte: quanto custa? Mesmo que sejamos descobertos, queimamos alguns milhões em custos jurídicos, recebemos multa de mais alguns milhões... e o resultado é que ainda estaremos bem na frente.
Hack tinha uma pergunta que não queria fazer.
- Então... esse contrato... o que ele diz que eu devo fazer?
O John ao seu lado cruzou as mãos.
- Bem, Hack, nós explicamos o plano de negócios. O que queremos que você faça é...
- Executá-lo - disse o vice-presidente John."
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Entrevista da Folha de São Paulo
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Livro "Eu S/A" descreve mundo "privatizado" pelas grandes corporações
THIAGO NEYda Folha de S.Paulo
Hack Nike está em apuros. Assinou um contrato com a empresa em que trabalha, a Nike, para assassinar alguns adolescentes que compraram o último lançamento da companhia, os tênis Mercury.A estratégia do departamento de marketing da empresa é gerar burburinho em torno do produto e, assim, aumentar suas vendas. Mas nem tudo sai como o esperado, e uma agente, Jennifer Governo, passa a investigar o caso. Hack Nike chama Hack Nike porque num "futuro próximo" todo mundo tem como sobrenome o nome da companhia em que trabalha. É um mundo dividido entre os países aliados dos EUA e os não-aliados (como a França), liderado pelas grandes corporações, em que o governo pouco ou quase nada atua; um mundo em que os cidadãos têm de pagar para serem ajudados pela polícia.Este é o ambiente de "Eu S/A", segundo livro do australiano Max Barry. Ele já foi professor de marketing e utiliza seus conhecimentos para desencadear a história, contada a partir do ponto de vista de vários personagens.O livro tornou-se best-seller na Europa, gerou um game on-line ("NationStates") criado também por Barry, movimenta as conversas no site do escritor (www.maxbarry.com) e teve seus direitos comprados por Steven Soderbergh. Por e-mail, Max Barry conversou com a Folha.
Folha- Já teve problema por ter utilizado nomes de empresas?
Max Barry- Nunca. Talvez porque seja claramente uma história ficcional. Não estou, por exemplo, alegando que a Nike tenha como estratégia de marketing atirar em grupos de adolescentes. Ou talvez seja porque eu utilize nomes de empresas grandes, e iria pegar mal para essas corporações processar um escritor satírico. Não sei o motivo, o que sei é que continuo utilizando nomes de empresas em meus livros, e elas continuam não me processando.
Folha - Você escreveu o livro em 2000. De lá para cá, o modo de atuação das corporações mudou?
Barry - Escrevi "Eu S/A" entre 2000 e 2001. A grande mudança, pelo menos nos EUA, é que, após o 11 de Setembro, o governo adquiriu poderes maiores. No livro há quase uma guerra entre as corporações e o governo, mas o que vemos no mundo hoje é outra coisa: grandes empresas, como a Halliburton, estreitam relações com o governo até um ponto em que não distinguimos onde um termina e o outro começa.
Folha - O livro é ambientado num "futuro próximo". É realmente um "futuro próximo" ou seria um "quase presente"?
Barry - É mais um "presente alternativo". Queria escrever uma história que fosse ambientada num mundo diferente do nosso --plausível, mas diferente-- e não queria perder tempo com os avanços tecnológicos de um livro ambientado no futuro. Então peguei a situação atual e mudei algumas coisas estruturais. Mas os editores preferem o "futuro próximo" porque é um jeito mais fácil de explicar do que "ambientado no presente, mas com algumas diferenças sociais importantes".
Folha - As grandes empresas são muito criticadas hoje por vários setores: ou pelos ambientalistas, ou por pagarem salários muito baixos, ou pelas táticas agressivas de marketing. Você vê nessas corporações um poder de influência maior do que o dos próprios políticos?
Barry - Há uma grande diferença entre os malefícios causados por corporações e os por políticos. Quando temos corrupção em setores do governo eleitos pelo povo, é porque alguém deliberadamente decidiu agir de forma antiética --abusando do poder que lhe foi concedido. Mas com as empresas, nós basicamente estamos dizendo a elas: "Façam o que for necessário para ganhar o máximo de dinheiro que conseguirem". A ganância corporativa nunca deveria nos surpreender, porque é inerente a esse sistema. O problema com as corporações é que elas são formatadas como instituições puramente capitalistas, mas depois elas passam a se alimentar do lobby político. É uma situação muito ruim quando você tem grandes empresas, cujo objetivo único é aumentar seus lucros, dizendo aos políticos os tipos de lei que as beneficiarão.
Folha - Você estudou e deu aulas de marketing em faculdades. Essas táticas descritas no livro foram aprendidas na escola?
Barry - Interessei-me por marketing na faculdade, mas utilizei as técnicas aprendidas principalmente em "Syrup". "Eu S/A" é mais o que os marqueteiros fariam se eles não tivessem de se preocupar com leis.
Folha - Muitas vezes você é comparado a Chuck Palahniuk e Naomi Klein, pelos assuntos abordados. Eles são uma referência para você?
Barry - Adoro os dois, e foi uma surpresa quando começaram a me comparar a Chuck Palahniuk. Gosto de seus livros, mas nunca vi tantas similaridades entre a gente. Ele é como um ícone desse tipo de ficção dark, bruta. Minhas histórias são menos sombrias.
Folha - Seu livro descreve uma sociedade assustadora, mas com bastante comédia. A sátira deixa o mundo menos sombrio?
Barry - Já ouvi opiniões diversas: alguns dizem que a sátira ajuda as pessoas a se preocuparem mais com o mundo; outros afirmam que uma piada pode fazer com que alguém não dê a devida importância a um problema. O que cada escritor busca é mostrar um pequeno pedaço do mundo, ou uma nova forma de olhar para ele.
Folha - Em "Eu S/A" vemos um mundo privatizado, em que a polícia só atua quando o cidadão a paga, em que pessoas têm sobrenomes de empresas... Você acredita que o capitalismo dos EUA caminha para esse tipo de situação? Você já foi chamado de comunista?
Barry - Às vezes, mas apenas por pessoas que têm problemas em entender que há outras camadas em política além das extremas-direitas e esquerdas... Acho que o mundo se tornará mais capitalista e que algumas das situações que parecem irreais no livro --como ter de pagar por uma ambulância ou levar o filho para estudar numa escola criada por uma empresa-- não demorarão muito para tornarem-se realidade. As corporações acumularam um nível de poder e riqueza tão grandes que é impossível acabar com isso.
Folha - No livro, os personagens têm histórias separadas que se cruzam. Foi difícil essa edição?Barry - Num primeiro rascunho, tinha todos esses personagens e situações que não se encaixavam. então reescrevi e reescrevi até que as histórias se intercalassem de maneira que me autorizasse a me descrever como escritor.
Eu S/A Autor: Max Barry Editora: Record Quanto: R$ 39,90 (352 págs.)"